A Arte da Memória e da Imaginação

Autor

Nova Acrópole

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A história da Arte da Memória tem a sua origem nos gregos e a educação desta importante faculdade humana, desde o ponto de vista de Giordano Bruno, submerge-nos em profundos significados.

Considerações preliminares

Antes de abordar a Arte da Memória e a Arte da Imaginação em Giordano Bruno queríamos tratar de alguns aspectos fundamentais da sua filosofia, que nos darão a chave para ascender a ambas, as quais não são mais do que um meio para chegar à divindade. Giordano pretende fazer uma reforma do psiquismo baseada em lugares mnemónicos e imagens com o seu novo tratado Ars Memoriae, que é uma revolucionária terapia do espírito. Em A expulsão da Besta Triunfante, o nolano oferece-nos uma bela imagem desta arte revolucionária: «Júpiter, decidido a mudar a vida, reúne os deuses em concelho (faculdades da alma) para lhes comunicar a sua vontade de reformar um céu (alma, mente humana), cujas constelações (vícios) recordam demasiado a sua conduta imoral». As novas constelações serão as virtudes.

Porque é que quer reformar esta arte? Talvez porque acreditasse que ainda não tinha ocupado o lugar sublime que ninguém lhe soube dar? Ou porque pensava, pelo contrário, que em épocas remotas tinha sido uma arte divina, com poder sobre a vida e a morte e que à medida que o tempo ia passando a sua magia e o seu mistério se ocultavam por trás do esquecimento? Não devemos esquecer que Bruno é um humanista que reúne em si uma série inumerável de filosofias, num afã de harmonizar os diversos elementos que tinha na sua época. Bruno transcende a visão daqueles humanistas que somente se centram na antiguidade clássica e a unem com vitalidade ao cristianismo. Coincide com eles na crença do poder do intelecto; na ideia de que a verdadeira sabedoria tem as suas raízes nas doutrinas dos antigos e no carácter natural da religião humana. A sua visão é antropocentrista e extremamente cósmica.

Identifica-se com os filósofos pré-socráticos, com o pitagorismo, hermetismo, platonismo e neoplatonismo. De tudo isso retirará os princípios do seu Ars Memoriae. Num século de reformadores, como o XVI, a reforma de Bruno distingue-se pelo seu maior esforço sintetizador de tradições culturais ou religiosas diversas. A sua reforma dos céus anuncia a sua reforma da mente, tal como se desprende das suas aplicações mágicas e herméticas da arte da memória. «Esta última estava destinada a ser uma espécie de instrumento intelectual ou exercício espiritual da religião hermética solar e do infinito que preconizava.» – diz-nos, magistralmente, um profundo conhecedor da sua obra, Ignacio G. de Liaño.

O nolano parte de um princípio fundamental, que é platónico, sem o qual não se pode entender em absoluto a sua arte da memória e da imaginação bem como nenhum outro postulado da sua filosofia.

Este princípio vital é a ideia do supremo bem, verdade e beleza, ao qual a alma deve ascender mediante o impulso entusiasta ou furor. Sair deste mundo «diverso, múltiplo e contrário», para o qual se requer a unificação das operações anímicas e intelectuais. A memória e a imaginação estão elaboradas especialmente para tal fim. O filósofo dedicou-se durante toda a sua vida à procura de um sistema de memória que pudesse converter o homem naquela ansiada divindade.

Geralmente, somente vemos trevas nas coisas. Isso acontece porque não nos esforçamos por ver a outra face da realidade

Existem dois modos de acesso à divindade: uma teológica, mediante uma visão transcendente de Deus, mais além das coisas e do mundo; a outra, a do nolano, que se pode denominar postura natural, imanente ou panteísta. Quer dizer que Deus é concebido através da Natureza, que está, por isso, deificada. Esta é uma visão mais comovedora, pois Deus está implicado em casa coisa que nos rodeia. Tudo o ocupa, o cognoscível e o incognoscível. A sua meta é, pois, a contemplação da unidade da Natureza (Deus in Rebus), já que a unidade é o carácter essencial da divindade. Aqui o temos empenhado, primeiro, em dar ao homem um carácter de unidade, integrando todas as suas forças e em atrair-lhe poderes celestes através de complicados procedimentos mnemónicos e de imagens.

Giordano, profundo conhecedor da natureza humana, reflecte na sua vida e na sua visão do mundo o paradoxo do Universo. Vai mais além da sua própria visão natural do mundo, não negando em nada a transcendência de Deus. Concilia magistralmente os conceitos de imanência e transcendência, que tantas disputas tinham originado dando azo a empolados e absurdos confrontos filosóficos. Podemos concluir dizendo que a divindade não só está nas coisas mas também para além delas e de «uma forma inexplicável». Mas ele não quer transitar pela trilha dos teólogos; prefere, como humanista que é, dirigir o seu olhar para o mundo natural, através do qual Deus nos fala com a sua linguagem misteriosa.

Giordano inicia a sua reforma do psiquismo para unificar todas as suas forças, elaborando imagens talismânicas que são «sombras» ou reflexos de Deus na matéria e que atraem poderes celestes. Existe uma gradação nas sombras; ele elabora as supremas. Tais imagens são confiadas a lugares especialmente elaborados da sua memória para que «produzam poderes» na sua alma.

A Arte da Memória, a Arte da Imaginação: a magia de Bruno

A Arte da Imaginação

A imaginação ocupa um lugar específico dentro da teoria do conhecimento de Giordano: existe hierarquização na escala do conhecimento. «A cogitação, ou discurso natural, baseada em imagens das coisas, que é a actividade racional ou intelectual, ou se dá com imagens ou não se dá em absoluto». – Giordano Bruno

Aqui temos, com exactidão, definida a capacidade cognoscitiva específica do homem, que lhe corresponde por natureza. Mas existe outra faculdade cognoscitiva mesmo superior à racional, que é a intuitiva, mediante a iluminação. Giordano, na sua obra De Imaginum deixa-nos em estado de tensão e a sua exposição do desenvolvimento da razão, da memória e da imaginação produz-nos uma certa dúvida; mas, neste ponto, estende os seus braços para que não caiamos no abismo. Afirma que o desenvolvimento da razão e da imaginação são como o esforço que abrirá, no futuro, as portas da nossa alma, e a Luz Una (Apolo) penetrará como o Sol através de uma janela que antes estivera fechada, detendo os raios no exterior. Então, o homem iluminar-se-á por intermédio da intuição.

O «furioso» deve ter isto muito presente, pois os seus primeiros passos no conhecimento da divindade recaem na sua faculdade cognitiva ou razão e na natureza (Diana, luz lunar, reflexo do Sol).

A imagem serve de união entre o objecto fenoménico e o conceito intelectual, entre o sensível e o material e o inteligível ou celeste, participando de ambos. A escala é: Imaginação, cujas qualidades são o movimento e a diversidade. Razão, que reúne tudo na sua composição, onde concorrem o Uno e o Múltiplo, o superior e o inferior. Mente ou Intelecto, cujas qualidades são a estabilidade, a unidade e a identidade. «Imaginação e sensibilidade ocupam o plano inferior do conhecimento humano, cujo plano superior é constituído pelo intelecto ou mente, com as espécies inteligíveis e imutáveis. A razão é a zona intermédia que enlaça ambos os planos» – Giordano Bruno. (Entenda-se por intelecto, em Bruno, a faculdade suprema do conhecimento humano que vem definida pela Iluminação, Budhi). «Existe não sei que analogia, clara e provada, ao tempo que oculta, entre as coisas superiores e a matéria inferior, pelo qual os favores divinos, incitados por algumas imagens e similitudes, descem e comunicam». (De Imaginum). A divindade desdobra-se misteriosamente na Natureza e chega a todas as coisas em algum grau. Tudo depende da intenção com que se observam as coisas do mundo. Em ocasiões, percebemos uma mesma realidade de forma mais plena do que noutras. Isso é assim porque nos aproximamos mais ao númeno, à divindade que se reflecte nos fenómenos. A intenção depende do nosso conhecimento, experiência e objectos a realizar, que em último caso, se reduzem ao conhecimento do ser. Necessitamos, pois, um método eficaz que nos conduza directamente ao conhecimento das essências.

O sistema de Bruno não está elaborado unicamente para fixar qualquer tipo de coisas que tenhamos que memorizar (embora sirva para isso), mas é um sistema que integra todos os planos do homem e o eleva até ao desconhecido. Quer dizer, tem um fim transcendente

A imaginação é um dos instrumentos que nos servirá para a transformação do homem. «Tudo está em tudo», dirá Bruno, no afã de que o homem observe com outros olhos a realidade sensível que participa da realidade inteligível. Geralmente, somente vemos trevas nas coisas. Isso acontece porque não nos esforçamos por ver a outra face da realidade. Quando deixamos actuar os nossos furores e mais nobres intenções percebemos em todas as coisas um mesmo espírito. São momentos de integração, de unidade. Então, vemos claramente e de «forma inexplicável», o nexo que une a multiplicidade de pequenas realidades. Somente então, com o nosso coração transbordante, sentimos, em algum grau, o mistério da vida e manifesta-se em nós o paradoxo de nos sentirmos pequenos, humildes e grandes, poderosos: esta é a nossa consciência, que nos mostra, na sua máxima expressão, a dualidade do ser. E isso é o que somos: ser e não-ser (não-ser no sentido bruniano de sombra ou reflexo do ser no mundo). Identificamo-nos com o material e o espiritual porque temos uma parte de um e do outro e somos pequenos e insignificantes e maravilhosamente grandiosos.

Giordano elabora uma língua para se comunicar com os deuses. Não é conceptual nem abstracta, mas baseia-se em imagens de tipo emblemático, caracteres hieroglíficos, com rasgos tipicamente astrológicos. As configurações celestes são como as letras de um livro que expressa os conceitos divinos: «Os céus narram a glória de Deus». A língua dos deuses está elaborada com hieróglifos porque a nossa língua é exclusivamente convencional, quer dizer, as letras e as palavras que a formam estão dispostas arbitrariamente. Não existe uma correspondência natural bem adequada para o contacto com as essências, entre o significante e o significado, entre a forma e o conteúdo. Existe uma ciência das imagens, das cerimónias mágicas e dos talismãs. Quem as domina é um mago que tem a virtude de fazer «maravilhas» e realizar vínculos entre os mundos. (Magus significa hominem virtutes agendi, que actua sobre a imaginação do espectador, alimenta os fantasmas – imagens – e as formas de que se serve e exerce uma poderosa influência sobre o psiquismo).

Bruno oferece-nos uma terapia através das imagens, mediante as quais despertam as forças profundas e as virtualidades ocultas. As palavras, os signos e os símbolos ajudam ao restabelecimento da saúde moral ou física.

A vista, que está ao serviço da imaginação, pode ser a causa de curas ou perturbações anímicas. Depende das imagens e das intenções com que as percebemos. Isto acontece porque existem diferentes tipos de imagens: aquelas que pela sua configuração se aproximam e reflectem, em algum grau, a essência divina e aquelas que se afastam do mundo celeste e penetram nas trevas.

Na actualidade, a psicologia conhece bem o influxo da imagem sobre a psique humana. O que se pode dizer sobre a propaganda quer consciente, quer subliminar?

No antigo Egipto, os sacerdotes, por intermédio da imaginação, actuavam sobre a matéria directamente e modificavam-na de acordo com as suas intenções. Podiam dar forma ou estrutura aos átomos dispersos do mundo sensível e uni-los com a forma específica elaborada com a sua imaginação.

Daí a importância da referida faculdade na conversão do homem em deus ou do homem em besta. «A imaginação reclama ser o primeiro vínculo da alma, meio-termo entre o temporal e o eterno. Ela é o sentido dos sentidos e, propriamente falando, o único sentido verdadeiro. É o corpo e veículo da alma, a fonte de onde flui a vida humana, o método mais venerável de se comunicar com Deus».

Este empenho de Giordano em modificar a psique humana e dar-lhe a dimensão que merece responde a uma profunda vocação altruísta de ajuda à humanidade. A sua visão implica uma verdadeira mudança na sociedade.

A Arte da Memória

As três fontes clássicas da memória são:

Ad Herenium, Mnemónicas de Cícero e Instituições oratórias de Quintiliano.

Tanto na antiguidade clássica, na Idade Média, como no Renascimento aparecem as mesmas regras. Mas a visão particular do mundo de cada época marca diferenças substanciais nas artes mnemónicas respectivas.

A Idade Média herda as regras clássicas e adapta-as à sua visão pietista do mundo.

Na transformação medieval da arte clássica da memória, aparecem dois elementos fundamentais: Loci e imagem. O Loci ou lugar é o suporte da imagem. Os lugares correspondiam a espaços das cidades ou da Natureza. Raimundo Lúllio e Giordano introduzem novos espaços mnemónicos: figuras geométricas. Já não será necessário memorizar amplos e variados lugares nos quais se poderiam depositar as imagens. As revolventes figuras imprimirão à arte um dinamismo que antes não possuía. Mas como imagens farão uso de hieróglifos.

O novo impulso nasce no Renascimento. O mundo adquire novas tonalidades. A postura dos humanistas diante da arte da memória não será a mesma em todos. Alguns, como Erasmo, rejeitarão a Idade Média considerando-a como uma época de barbárie. Isto levá-lo-á a desprezar, também, a milenária arte cultivada na Idade Média com excessiva obsessão para o proveito dos favores divinos. Outros humanistas, com uma visão mais acertada, não desprezarão a arte da memória só porque era cultivada na Idade Média. Esta postura corresponde aos neoplatónicos renascentistas com o seu núcleo hermético. Deste modo manteria um lugar privilegiado dentro da cultura humanista.

Às regras da cultura clássica acrescentam-se as da tradição hermética cabalista. Transcende-se a cultura clássica em busca de um maior aperfeiçoamento. Duas figuras representativas, entre outras, desta tendência são Marsilio Ficino e Pico de la Mirandola até à aparição de Giordano Bruno, profeta de uma revolução mágica, em sintonia com os novos tempos. A sua primeira obra mnemónica foi Clavis Magna, que se perdeu. Em De Imaginum aparecem «as águas da vida e da memória». As suas águas são benéficas ou maléficas segundo as bebamos sábia ou imoderadamente – afirma Bruno –, pois podem provocar perturbações anímicas e mesmo loucura. É necessário ter um Mestre. Se assim não for, «o fruto do estudioso será o das orelhas de Midas, símbolo da estultícia e da vaidade».

Na verdade, o praticante da divina arte necessita da figura do Mestre para que seja orientado pelo caminho difícil da realização e da integração das suas forças ocultas, através de ensinamentos, que só se podem transmitir de Mestre a Discípulo e em circunstâncias astrológicas, lógicas e psicológicas específicas, para abrir o caminho para o mundo supra celeste. Ninguém, somente por intermédio do pensamento racional e da leitura, poderá abrir caminho até ao mistério da vida. Acreditará saber quando, na realidade, é vítima da pior das ignorâncias. Deste modo não pensemos que estas humildes indagações intelectuais nos levarão facilmente a entender o mistério que subjaz na Filosofia e artes mnemónicas do nolano. O certo é que estas não são senão umas pequenas considerações sobre um sistema que agora se infiltra como a água numa superfície porosa. Até que não se conquiste, por mérito próprio, não se saberá qual é o seu verdadeiro alcance.

Giordano legou ao seu futuro um sistema mnemónico universal que, como o seu pensamento filosófico, guarda dentro de si um profundo paradoxo, que é o de ser universal mas ao mesmo tempo assombrosamente particular e intransferível, pois o praticante tem que construir o seu próprio sistema de acordo com a sua própria realidade, os seus símbolos, a sua visão subjectiva do mundo. O trajecto inicia-se, então, na nossa própria subjectividade do mundo. Possuímos, subjectivamente, referências que nos são familiares. A elas iremos fixando as novas referências que esta arte nos irá proporcionando. Somos, pois, o suporte imprescindível das novas e misteriosas realidades do universo.

Se o descobrimos, uma imagem chamará outra e assim, desde o natural ou material chegaremos entusiastas ao celeste e ao supra celeste.

O sistema de Bruno não está elaborado unicamente para fixar qualquer tipo de coisas que tenhamos que memorizar (embora sirva para isso), mas é um sistema que integra todos os planos do homem e o eleva até ao desconhecido. Quer dizer, tem um fim transcendente. Aquele que o domina tem poder sobre todas as coisas e em primeiro lugar sobre si mesmo. O trajecto inicia-se, pois, desde a nossa perspectiva subjectiva, para transcendê-la e convertermo-nos em «todas as coisas». Todo o Universo, com todo o seu mistério está em nós próprios, apesar de não nos darmos conta, já que a nossa consciência só nos pôs em contacto com um número limitado de realidades e num nível ou grau determinado de percepção do mistério.

O sistema revolvente mnemónico que serviu ao nolano vale-nos quanto às leis gerais que o formam. Cada praticante terá que descobrir os seus símbolos afins e dispô-los dentro de rodas, novos espaços mnemónicos geométricos nos quais se introduzirão imagens hieroglíficas, entre outras, extraídas por Bruno de uma manual sobre magia de Agripa, no qual se dão uma série de imagens mágicas das estrelas, que este empregou no seu sistema da memória.

Giordano usa, também, as poderosas imagens dos decanos do Zodíaco, muito importantes na Astrologia Egípcia. Giordano, o mestre, alarga os seus braços desde o céu, para que tenhamos no mundo celeste um ponto de apoio com o qual possamos mover, como dizia Arquimedes, o mundo inteiro.

 

Artigo da Nova Acrópole

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